Tudo são histórias de amor, de Dulce Maria Cardoso

Reunião: 12 junho 2019

Texto no blogue: Bibliotecário de Babel:

No novo livro de contos de Dulce Maria Cardoso – Tudo são histórias de amor: título enganoso e de uma ironia amarga, como o leitor rapidamente perceberá – os textos são quase sempre construídos a partir de um núcleo central ocupado por uma imagem muito poderosa, cuja carga dramática, ou poética (ou ambas), se expande depois ao resto da prosa, contaminando-a; isto é, iluminando-a. Pode ser a aparição de uma beleza angélica num «além-mundo azul», a ilha do primeiro conto, com a população de faroleiros e suas famílias a devorarem a cesta de cerejas trazida pela forasteira («O sumo vermelho escorria-lhes pelos queixos e pelas mãos»), prenúncio de uma carnalidade que destruirá a inocência do narrador, inclinando-o de vez para o exercício do mal. Pode ser um cão habituado a roubar nacos de carne ao talhante e que um dia aparece em casa com a perna de um bebé, uma «perna rechonchuda que terminava num pé gordo com cinco dedos perfeitos». Pode ser uma mosca a debater-se dentro de um copo com resto de vinho rosé, durante uma tépida disputa conjugal.

Duas destas imagens fortes são protagonizadas por automóveis. Em Os anjos por dentro, a história de tensões familiares contidas, na sequência de um piquenique junto ao rio, desemboca numa situação fantástica quando o narrador, acompanhado pelo irmão e pela mãe, avança por um atalho, a subir, e depara com um Opel Kapitan em sentido contrário, «animado por vontade própria», sem ninguém ao volante, pronto a esmagá-los. De repente, o carro parou, «simplesmente», impossivelmente, «como se se tivesse esquecido de como as coisas são». Esta espécie de milagre torna-se um tabu («Nunca falámos sobre o que aconteceu naquele dia ao voltarmos do rio»), mas a sua força reverbera e dá sentido à «violência do amor» que pressentimos, subterrânea, por baixo do que é dito. «Talvez não tenha acontecido tudo exactamente como contei», admite ainda assim o narrador.

E alguma vez contamos as coisas exactamente como aconteceram? Veja-se a narrativa inspirada no célebre caso do desaparecimento de Joana, a menina algarvia de oito anos cuja mãe foi condenada por homicídio. Há elementos que nos aproximam do hediondo crime (alguns factos, a brutalidade dos interrogatórios policiais, a confissão, os impulsos da justiça popular), mas Dulce Maria Cardoso logo introduz uma dimensão quase onírica que anula qualquer tentação realista, justamente através da imagem de um automóvel, um Volkswagen carocha amarelo, brinquedo preferido da menina. Esta, antes de desaparecer sem deixar rasto, escondera-o debaixo de terra como se fosse «uma boa semente», da qual virá a nascer, no arrepiante final do conto, um «carocha amarelo verdadeiro». Em Não esquecerás, o ponto de partida é outra história real: a do acidente de Entre-os-Rios, quando um dos pilares da Ponte Hintze Ribeiro ruiu, arrastando dezenas de pessoas para as águas do Douro. «Tu, leitor, vem cá, caminha comigo na berma desta estrada», diz-se logo de início, e assim somos levados debaixo de chuva até ao autocarro que parou ali adiante, resgatando quem procura escapar da intempérie. Lá dentro, alegres por terem visto as amendoeiras em flor, estão as futuras vítimas. Pessoas normais, gestos normais, vidas normais. A tragédia está aqui, nesta normalidade ameaçada, a poucos minutos de mergulhar no abismo da morte. Transformados em personagens sem nome, os passageiros são como que redimidos do destino que a negligência do Estado lhes teceu. E aqueles cabelos de rapariga, «suspensos no ar quando a cabeça se volta», pairarão assim para sempre na memória do leitor que, como a história, não chega a atravessar a ponte.

Num texto autobiográfico, em que conta como «matou» uma parte de si mesma para poder ser ficcionista, Dulce Maria Cardoso afirma: «Escrever é espreitar outras vidas. É contar mentiras e acreditar que isso é bom.» Neste livro, as vidas espreitadas estão muitas vezes sujeitas ao império da maldade, própria ou alheia, essa «planta carnuda» que lança «ramos vigorosos para todo o lado». Num dos contos mais negros, Humal, um ser monstruoso só comove os aldeões com a beleza do seu canto quando é sujeito a torturas físicas: «Para que as criaturas fornecessem o bem de que eram capazes era preciso infligir-lhes sofrimento. Mas isso sempre foi um trabalho simples: há sofrimento em abundância neste mundo de Deus e consegui-lo é das coisas mais fáceis.» São vários os contos do livro (por exemplo, Este azul que nos cerca ou Iguais) em que esta brutalidade visceral se manifesta. Entregues ao «martírio de pensar» e incapazes de «domar o tempo», as personagens são como pequenos animais indefesos, à mercê tanto da «solidão do que envelhece» como da «impiedade do que é novo». Acima deles, a autora monta as armadilhas e observa com rigor clínico. Quanto à escrita, exemplar, é sempre feita a partir do «local do crime». Isto é, «do sítio das palavras».

[Texto publicado no suplemento Actual do jornal Expresso]

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