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O texto como enigma em António Lobo Antunes

Artigo de: Fernando Henrique Crepaldi Cordeiro em TODAS AS LETRAS, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 209-222, jan./abr. 2018

Publicado em 1990, o Tratado das paixões da alma é o oitavo romance de António Lobo Antunes, escritor português nascido em 1942 na cidade de Lisboa, que, a partir de 1979, com Memória de elefante, transforma-se em um dos mais prolíficos e renomados autores lusitanos de seu tempo. Neste estudo, pretendemos desvendar os mecanismos construtivos desse romance antunesiano, dando especial atenção para o processo narrativo composto por diversas vozes e um constante entremear de linhas narrativas e de eixos temporais que transformam o texto num verdadeiro emaranhado que cabe ao leitor elucidar.

A narrativa conta, a partir de um interrogatório, a história de dois personagens, o Homem e o Juiz de Instrução, sujeitos que ocupam agora os papéis de interrogado e interrogador, respectivamente, em uma investigação acerca de uma série de atentados ocorridos em Portugal logo após a Revolução de 1974. Embora em polos opostos no processo de investigação, os dois compartilham um passado em comum, foram amigos na infância quando os pais do Juiz trabalharam na quinta dos avôs do Homem. Tal situação implica que a narrativa, que a princípio enfoca o inquérito sobre esses ataques, acabe por favorecer a investigação do relacionamento dos dois personagens, abrindo espaço para a

rememoração de sua infância. Dessa maneira, observa-se que o romance de Lobo Antunes se configura como uma composição centrada nas rememorações e pequenas histórias relativas aos personagens que surgem no enredo, não se restringindo, no entanto, apenas ao Juiz e ao Homem, mas ampliando o repertório da narrativa. Constrói-se, assim, um relato que, como quer Arnaut (2011, p. 78), “[…] vive de histórias e de tempos que engordam”, ou seja, uma estrutura de narração que se desenvolve a partir de reminiscências, de histórias adjacentes ao que poderia ser entendido como o fio condutor da narrativa, mas que são “[…] sem dúvida, indispensáveis a uma melhor compreensão do mundo e das personagens do romance”.

O romance de Lobo Antunes, nesse sentido, se espraia em diversas pequenas histórias, “microperipécias”, nos termos de Cazalas (2011, p. 51), que surgem no fluxo memorial. Esse procedimento narrativo, portanto, representa uma tendência ao definhamento da ação em favor da rememoração. Desse modo, considerando a primeira parte de Tratado das paixões da alma, pode-se dizer que, a princípio, não acontece praticamente nada, pois a ação se inscreve como memória, como recordação de situações passadas, aproximando essa narrativa de obras anteriores de Lobo Antunes, como Os cus de Judas (1979), Conhecimento do inferno (1980), ou Auto dos danados (1985), romance a respeito do qual Seixo (2002, p. 156) afirma não haver “propriamente acontecimentos e, por conseguinte, não há, no geral, sequências narrativas”, mas uma “espessura de reminiscências, evocações […]”. Esse tipo de construção narrativa, segundo Cazalas (2011, p. 58), aponta para um desvio da lógica narrativa em função de uma lógica associativa em que o maquinismo da intriga “[…] é abandonado em prol de microacontecimentos cuja lembrança surge na memória das personagens”.

[…] Continua em: http://dx.doi.org/10.5935/1980-6914/letras.v20n1p209-222

Tratado das paixões da alma, de António Lobo Antunes

Reunião: 25 outubro 2019

No blogue: Contracultura aplicada

Tratado das Paixões da Alma é o primeiro romance da trilogia apelidada de “ciclo de Lisboa”, composta por A Ordem Natural das Coisas e A Morte de Carlos Gardel. Este ciclo comporta a infância e adolescência de António Lobo Antunes e a sua vida em Benfica, Lisboa, recheada de lembranças dos seus amigos e da relação que tinha com os seus familiares, acontecimentos que marcaram o autor e que o mesmo nunca mais esqueceu.

Homem, inicialmente assim apresentado, é um indivíduo que pertence a uma organização terrorista e que se encontra preso a prestar declarações perante o “cavalheiro” e pelo Juiz de Instrução, de seu nome Zé. Ao largo da estória, o Homem revela chamar-se Antunes, e mais tarde António Antunes, sendo que o Juiz de Instrução tem o nome de Zé. A primeira conclusão que se pode retirar, é obviamente que Tratado das Paixões da Alma tem como personagem principal o próprio autor, intercalando os parágrafos com Zé e com outras personagens (algumas da rede terrorista: Sacerdote, Artista, Estudante, etc), ainda que durante a grande parte das páginas haja um parágrafo para o Juiz e outro para o Homem, respectivamente.

Se António (Lobo) Antunes é o Homem, Zé, o juiz, poderá ser o seu grande amigo já falecido José Cardoso Pires. Apesar de durante o livro todo não surja qualquer tipo de referência a “Cardoso” ou a “Pires”, não devemos excluir a possibilidade de que José Cardos Pires seja mesmo a personagem Zé, o Juiz: José Cardoso Pires aparece muitas vezes nas crónicas de Lobo Antunes como “Zé” e sempre tratado com um enorme carinho. A existência de uma rede terrorista e de Zé e António Antunes passarem o tempo na esquadra, serve apenas de pano de fundo para as lembranças de infância e adolescência que ambos partilharam em Benfica, sendo este sim, o verdadeiro tema do romance.

Zé e os seus pais são os caseiros duma quinta que pertence ao avô de Antunes, onde também vive António e os seus pais, e durante o período em que Zé e António conviveram, apercebemo-nos de que havia uma grande amizade entre os dois – melhores amigos do mundo -, onde não faltaram travessuras e situações verdadeiramente cómicas, escritas numa linguagem muito própria a que o autor já nos habituou: “- Repara no que o teu Avô me fez à boca, nota só o inchaço da gengiva, lamentou-se o meritíssimo a exibir o beiço ao Homem, dobrando-o, com os polegares, no sentido do queixo. Não me partiu um dente em bocadinhos por acaso, não me convides mais para fumar que o velho deixa-me em picado num segundo”

Tratado das Paixões da Alma, publicado em 1990, é um romance importante na vasta obra de António Lobo Antunes. A guerra colonial abordada de forma exaustiva nos seus prévios registos aparece aqui com pouca relevância, dando-nos espaço para conhecermos melhor o crescimento do jovem Lobo Antunes em Benfica e isso acaba por se tornar essencial na compreensão de um autor tão auto-biográfico como este.